Entrevista a João Cerqueira

João Cerqueira é um repetente na nossa rubrica “entrevistas”. Foi entrevistado por nós em 2015 (link entrevista) e aceitou novamente o convite passados 7 anos e alguns livros.

Obrigada ao João por ter respondido às minhas perguntas. Podem acompanhar o seu percurso em:  http://www.joaocerqueira.com/ .

HT: Em 2015 perguntei-lhe como tinha surgido o gosto pela escrita. Agora, depois de conhecer melhor a sua obra e o seu percurso, tenho curiosidade em saber qual o lugar que ocupa a História da Arte na sua vida?

João Cerqueira: Dou aulas de História da Arte na Escola Superior de Educação de Viana do Castelo. Além disso, as minhas teses de mestrado e doutoramento, esta com mais de quatrocentas páginas, foram fundamentais para melhorar a qualidade da escrita e para aprender a estruturar um texto e a arrumar as ideias. Sem prejuízo da criatividade, estas competências que adquiri são muito uteis na escrita de um romance.

HT: O João tem uma obra literária bastante reconhecida e premiada, ainda que seja mais no estrangeiro. Consegue perceber o motivo?

João Cerqueira: Eis uma boa pergunta que poderia ser feita a algumas editoras portuguesas e aos jornalistas e críticos que ignoram o meu trabalho. Venci quatro prémios literários nos Estados Unidos (um deles já foi patrocinado pela Amazon), estou publicado em oito países, tenho críticas na Melbourne Review of Books e em várias revistas americanas, fui entrevistado pelo Seatle Pi e pelo El Nuevo Herald, mas em Portugal só recentemente o CM ,o JN  e o SOL me divulgaram. Será que um escritor português ser publicado e vencer prémios noutros países não é motivo para divulgação nas secções culturais dos jornais? Porque será que, entre outros, a Agência Lusa – que supostamente existe para dar notícias – manda para o lixo os emails que ao longo destes anos lhes tenho enviado sobre o reconhecimento que tenho tido no estrangeiro? Posso ainda referir que há uns anos a directora de um dos principais jornais recusou publicar uma peça sobre mim feita por um jornalista da casa, uma revista de literatura contactou-me para uma entrevista e depois recusou também publicá-la e, recentemente, uma crítica de cinco estrelas que foi colocada numa das maiores livrarias online desapareceu misteriosamente.

Dito de outra forma, sinto-me censurado por dizer coisas que desagradam aos donos da cultura.

Aliás, a maioria dos escritores e artistas portugueses ou estão com a Situação ou não emitem opiniões políticas.

HT: Os seus livros “A Segunda Vinda de Cristo à Terra” e “A Tragédia de Fidel Castro” estão cheios de humor e criatividade. Inspirou-se em alguns escritores com estas características ou é uma “coisa” sua?

João Cerqueira: Como refiro na minha página, sou influenciado por uma tradição literária  onde o humor predomina. Os textos satíricos e humorísticos começam com as Cantigas de Escárnio e Maldizer, prosseguem com o teatro de Gil Vicente, depois com a poesia Bocage, até chegarmos a Eça e Camilo. Mas, no século XX, a corrente Neorrealista acaba de vez com o humor. E, até agora, foram raros os autores que voltaram a usá-lo.

Seja como for, o humor é algo que me surge espontaneamente, não sob a forma de anedotas – aliás, não tenho jeito nenhum para as contar -, mas como uma forma de ver o absurdo do mundo e a loucura dos homens. Assim, o meu processo mental de transformar ideias em palavras escritas está, quase sempre, imbuído de humor. Há escritores que dizem que sofrem quando escrevem. Eu, geralmente, rio-me. Contudo, em Perestroika, o sofrimento dos personagens, como por exemplo a angústia da mãe que não tem comida para dar à filha ou as crianças vítimas de abuso, afectou-me. Para contrabalançar essa tensão, o humor aparece noutras partes do livro. Há um cônsul francês que se torna realizador de filmes pornográficos (A Perestroika na cama) para pagar a casa em Paris tentando convencer-se de que está a lutar contra a moral burguesa; e um cozinheiro louco que julga ter descoberto o efeito das batatas na saúde mental.

HT: Acha importante o humor na escrita?

João Cerqueira: O humor é uma das expressões mais sublimes da inteligência e está presente em quase toda a grande literatura. Como referi atrás, até ao século XX as principais obras da literatura portuguesa estão cheias de humor. Em Espanha temos o Dom Quixote de Cervantes. Em França o teatro de Molière e o Pantagruel de Rabelais. Em Inglaterra, o teatro de Shakespeare e As aventuras de Gulliver de Swift. Em Itália, Os noivos de Manzoni. Nos Estados Unidos, Mark Twain. Estas obras são muito diferentes quer no conteúdo, quer no estilo, mas une-as o humor como processo de análise e critica das relações humanas e dos diversos poderes que as tiranizam. O humor, além de divertir os leitores, é uma arma poderosa contra a estupidez e o fanatismo. 

Contra a censura.

HT: Acaba de lançar um novo livro: “Perestroika”. Como é que surgiu a ideia de escrever sobre este tipo de regime?

João Cerqueira: Já há algum tempo que alinhava ideias para escrever um romance sobre a Perestroika. Ainda me lembro da queda do Muro de Berlim e dos  povos dos países comunistas a exigirem liberdade nas ruas. Além disso, não há praticamente no mundo nenhum romance sobre o tema. Foi esquecido. Mas o grande empurrão para começar a escrever o romance deu-se em Madrid quando fui apresentar La Tragedia de Fidel Castro. As conversas que tive na altura com o meu editor espanhol, Max de la Cruz, foram determinantes para iniciar o projecto. E neste Verão o livro será traduzido para espanhol. Ressalvo que a sua editora – Funambulista – publica Fernando Pessoa.

No entanto, Perestroika não é um livro sobre política, mas sim sobre a natureza humana. É sobre a descoberta da verdade, a vingança, a catarse e a possibilidade de redenção. Passa-se num país imaginário – a Eslávia - , mas, com algumas modificações, conseguiria colocar o romance no período do Estado Novo ou noutra ditadura onde quem tem o poder pode abusar dos mais fracos com impunidade. Pedófilos, assassinos, ladrões, viciados em drogas, prostitutas e neonazis existem em todo o lado.

HT: É um livro cheio de personagens e pequenos enredos que se vão cruzando. Como é que funciona o processo de criação de personagens?

João Cerqueira: Para criar os trinta e oito personagens de Perestroika tive de fazer uma lista com os seus nomes, as suas características físicas e psicológicas, e o papel que iriam desempenhar num arco temporal de catorze anos. Essa lista aparece no início para facilitar a leitura. Alguns personagens têm nomes de figuras históricas, como o pintor Ludwig Kirchner, o comissário do povo para a cultura Zdanhov ou o próprio presidente Ionescu. Assim, sendo um romance de História alternativa, mantem ligações com a História real num jogo pós-moderno de metaficção.  Além de impulsionar a história, a sua interacção fá-los evoluir ao longo do tempo. Todos eles irão ser confrontados com escolhas dramáticas e com as consequências dos seus actos. Alguns irão pagar a descoberta da verdade com a própria vida, outros exorcizarão os seus demónios. A dificuldade foi não deixar uma única ponta solta, nenhum personagem perdido. E, no final, há uma reviravolta ou twist como dizem os americanos que espero que nenhum leitor seja capaz de adivinhar durante a leitura. 

HT: Para terminar, a pergunta do costume: tem planos para um próximo livro ou ainda está a “aproveitar” este.

João Cerqueira: Já estou a escrever há uns meses uma história pós-apocalítptica. Poderá chamar-se A Grande Catástrofe, ou o Bibliotecário do Fim do Mundo, ou A Mulher do Fim do Mundo. Só no fim saberei. Passa-se quarenta e oito anos depois desse fim do mundo e os personagens são os sobreviventes. As principais influência deste romance são os livros A Estrada de Cormac McCarthy, The Postman de David Brin (que grande livro), Estação Onze de Emily St. John Mandel, A última Fome de John Christopher, e, claro, a série The Walking Dead.

A grande dificuldade é entrar na cabeça de personagens que nunca existiram. Sabemos como pensava o homem medieval, mas nem os cientistas, nem os historiadores podem dizer como irá pensar alguém que sobreviva ao fim do mundo. Por um lado, é influenciado pelos vestígios da civilização, como os livros, mas, por outro, a lei da sobrevivência leva-o a comportar-se como um ser primitivo, ou um animal. 

E se em Perestroika há um quadro de El Greco que atravessa a história, neste novo romance é um quadro de Caravaggio que induz a heroína à revolta contra um tirano que criou uma cidade de escravos.


Sem comentários: